O RISCO AVAAZ
extraído do brasilianas.org blog do bendidle
Autor: Felipe Bertoni
O ciberativismo, ou ativismo digital, é um fenômeno que alterou as regras do jogo entre os veículos tradicionais e os alternativos de comunicação. Com a possibilidade de difundir reivindicações, a internet se transformou no habitat natural do ativista, que descobriu a força das mídias sociais. A recente utilização do facebook e do twitter na revolta egípcia, culminando com o afastamento do ditador Hosni Mubarak, demonstra a força descomunal do ativismo digital. No Brasil, as possibilidades são enormes. De acordo com dados do Censo de 2010, 81 milhões de brasileiros acessam a internet, e 51 milhões de pessoas se utilizam das diversas mídias sociais (twitter, facebook, orkut) para obter informações. Soma-se a isso as eleições para presidente no ano passado, disputadas tanto nas ruas quanto na web, e podemos imaginar a grande influência que o ciberativismo terá nos rumos da política nacional nos próximos anos.
É nesse contexto que surge a Avaaz, uma ONG fundada pelo ativista Ricken Patel, cuja linha de atuação consiste basicamente na promoção de petições online (e-petitions) para defender uma grande variedade de causas, desde a libertação de presos políticos até a proteção à Amazônia. No Brasil, a Avaaz teve atuação relativamente discreta até o ano passado, quando lançou uma petição para "acabar com a corrupção" no país, defendendo a aprovação do PL da Ficha Limpa. Com mais de 2 milhões de assinaturas, a Avaaz concretizou sua popularidade e ganhou a simpatia dos brasileiros. No entanto, a atuação da entidade como defensora de causas nobres é perigosa. A ONG faz falsas promessas, se apropria da mobilização alheia, vende vitórias que não são dela e afirma ter um poder de lobby que não tem, além de passar informações equivocadas e fazer defesas superficiais de suas causas. Ademais, a Avaaz é não apenas uma entidade inútil no que se destaca (petições online) como é potencialmente danosa para o ativismo digital.
A panaceia Avaaz
A entidade afirma que pode alterar políticas públicas através da pressão popular compactada em uma petição online com uma mensagem de um ou dois parágrafos, e milhares ou milhões de assinaturas. Esse talvez seja o maior problema da entidade. Sem negar que a ONG trabalha em outras mídias, é importante reconhecer que essa é a sua principal linha de atuação. E não é uma linha eficaz.
Em primeiro lugar, o número de assinaturas de uma petição online pode ser facilmente falsificado (ao contrário de uma petição tradicional, em que você de fato assina seu nome e é ao menos trabalhoso falsificar as assinaturas). Por exemplo, eu usei o mesmo computador, o mesmo ip, o mesmo cep e o mesmo número de telefone, mudando apenas uma letra no meu nome (Felipe Bertoni e Felipe Bertonio) e assinei duas vezes uma petição online para que a Dilma pare Belo Monte na Avaaz (dei printscreen, caso alguém exija provas, mas sugiro que façam vocês mesmos). Então nenhuma dessas petições é realmente séria, porque os números de assinaturas são fictícios e provavelmente os militantes inventam centenas ou até milhares de nomes diferentes para inflar uma iniciativa que defendem. Como a Avaaz pretende que os governos levem suas petições a sério se ela não possui qualquer controle sobre quem assina?
Em segundo lugar, não existe nenhuma garantia que as petições serão corretamente enderaçadas, ou mesmo que serão endereçadas a qualquer pessoa. Nesse sentido, vale a pena ler a denúncia da ativista Margaret Setterholm sobre como a Avaaz tratou a petição para libertar Iman al-Obeidi.
Em último lugar, mesmo que endereçadas corretamente e com todas as assinaturas legítimas, não existe nada sugerindo que uma petição online realmente cause alguma pressão sobre quaisquer autoridades. Ah, o Gordon Brown e o Al Gore disseram que a Avaaz é o futuro do mundo, então talvez ela exerça algum tipo de pressão, certo? Errado. O Al Gore, o Gordon Brown e outros políticos provavelmente são os maiores interessados na ascensão do slacktivism (o ativismo de mentirinha, que não tem qualquer impacto real na sociedade mas faz com que o pretenso ativista se sinta bem) sobre o ativismo real. Quando se propaga a ideia de que assinar uma petição online é "fazer a sua parte" ou, pelo menos, que é "melhor do que nada", os espaços para o ativismo real diminuem. Por que? Porque uma boa parte das pessoas que praticam ativismo o fazem como uma forma de alívio da consciência. Existe um grande e justificado sentimento de culpa por parte das elites, especialmente em um país desigual com o Brasil, e quando uma ONG como a Avaaz afirma que você pode mudar o mundo com um clique, esse alívio da consciência é entregue gratuitamente.
O ativismo não precisa ser difícil, e o ciberativismo demonstrou com o passar dos anos que não é necessário sujar as mãos para trabalhar por uma causa. Petições online, no entanto, tem mais claramente o condão de criar alguma forma de conscientização do que ser um veículo que exerce poder de lobby. No entanto, no caso específico da Avaaz, até a conscientização é praticamente nula, porque a entidade se preocupa muito mais em criar slogans chamativos e frases de efeito do que em transmitir conhecimento. Ainda mais grave é o fato de que a Avaaz não cria nenhuma petição com o objetivo de conscientizar, admitindo que suas campanhas passam por um filtro de popularidade antes de serem lançadas, como demonstrarei a seguir.
A Avaaz e as prioridades da pequena burguesia
Na aba "quem somos", a Avaaz afirma que:
"(...)define prioridades gerais através de pesquisas entre todos os seus membros (...). As ideias para campanhas são submetidas a pesquisas e testes semanalmente com amostras aleatórias distribuídas a 10.000 membros, e apenas as iniciativas que recebem uma forte reação positiva são implementadas em grande escala. As campanhas que acabam chegando a todos os membros são depois reforçadas, muitas vezes, por centenas de milhares de membros da Avaaz participantes no período de alguns dias ou mesmo horas." (grifamos)
Em outras palavras, o valor de uma iniciativa não está na sua importância ou urgência, mas na sua popularidade. A Avaaz não está interessada em defender uma causa pelo seu valor intrínseco. Desde que receba apoio dos seus "membros" (e vale ressaltar que por "membros" a Avaaz se refere a pessoas que simplesmente fizeram cadastro no site da entidade) e suas petições ganhem uma porção de cliques, a entidade está disposta a defender qualquer coisa. Talvez isso explique o recente lançamento dos best-sellers Nada de Formula 1 no brutal Bahrein, Proteja o Brasil do Bolsonaro e 24 horas para acabar com a Guerra às Drogas!. Movida pelo que há de mais quente e popular nas causas sociais do momento, a Avaaz é pautada pelos interesses genéricos de uma classe média que não compreende os mais diversos problemas do Brasil e do mundo só por ter preenchido um cadastro. Ao escolher suas iniciativas através desse filtro, a Avaaz se torna uma ONG que só defende causas nobres de maneira acidental, e pode muito bem ter deixado de lançar iniciativas mais importantes pelo desinteresse de alguns "membros".
Aí reside a onipresença incompetente da Avaaz: Ao apresentar tantas petições sobre tantos temas diferentes, alguns extremamente profundos e difíceis de compreender, a Avaaz abusa de sua confiança junto às pessoas cadastradas, obrigando-as a tomar posições que eventualmente não entendem. Isso porque o teor dos e-mails que os membros recebem é escandaloso e emergencial, além de ser pouco informativo, e tudo o que a entidade pede é um clique. Retomando dois dos best-sellers que citei acima: Proteger o Brasil do Bolsonaro, na petição da Avaaz, significa tomar uma posição favorável ao PL 122. Para que qualquer um assine essa petição conscientemente, é preciso ter lido e compreendido o Projeto de Lei, além de entender a Lei 7716/89 (talvez acessando o blog do Gunter Zibell) não somente ser contra a homofobia. O mesmo acontece com a assinatura consciente pedindo o fim da Guerra contra as Drogas. Não basta ser contra o tráfico de entorpecentes ou a favor da legalização da maconha, é preciso ter consciência do que significa a Guerra contra as Drogas, quais as consequências da política proibicionista e repressora da ONU e quais as consequências do fim dessa política. Estas não são questões triviais. É quase impossível para qualquer um tomar uma posição consciente sobre todas ou até mesmo sobre a maioria das petições que a Avaaz promove, o que é somente um agravante ao fato de a ONG não consultar especialistas para dar início às suas iniciativas, mas os mesmos membros leigos que assinam suas petições.
A Avaaz cria um número superficial de assinaturas, não uma militância real com poder de lobby. A atividade da entidade poderia ter um cunho informativo, se ela se prestasse ao trabalho de compartilhar conhecimento com os membros cadastrados, ou mesmo com as pessoas que eventualmente assinam uma de suas petições. Mas de acordo com a própria entidade...
A Avaaz não tem interesse em transmitir informação
Com a palavra, a ONG:
"A equipe da Avaaz escreve alertas de e-mail à comunidade de membros da mesma forma que um assessor de presidente ou de primeiro-ministro prepara breves relatórios informativos para o chefe: temos pouco tempo para transmitir as informações vitais de que o leitor precisa para decidir se deseja envolver-se na campanha, e essa decisão é de crucial importância para a campanha." (grifamos)
A Avaaz possui duas formas de publicizar suas campanhas: Através dos e-mails enviados para os membros cadastrados (mais de 9 milhões de pessoas) e através dos blogs e mídias sociais que repercutem suas petições. O segundo caso é um pouco mais grave, porque a entidade se compromete ainda menos em transmitir informações no seu próprio site. Tome-se como exemplo a campanha da Avaaz para pressionar a ONU a passar uma resolução instituindo uma zona de exclusão aérea na Líbia. Através da campanha promovida pelo site, é impossível saber até mesmo o que vem a ser uma zona de exclusão aéra. O fato de existirem pessoas que continuam assinando a petição demonstra apenas que muitos "militantes" assinam sem ter a menor ideia do que seja a guerra, uma vez que desde março a Líbia é zona proibida de voo.
No caso dos e-mails enviados, os mesmos textos encontrados no site aparecem junto com links para "mais informações". No best-seller Nada de Formula 1 no brutal Bahrein, a maioria dos links para que o membro se informe diz respeito a protestos que ocorreram no Bahrein e confrontos entre militantes e a polícia. Nada que possa levar alguém a apoiar um boicote da Fórmula 1, apenas informações soltas, mais ou menos relacionadas com o tema em questão. É o tipo de petição que poderia levar a Avaaz a fazer, no futuro, a iniciativa Nada de Fórmula 1 no brutal Brasil, mostrando notícias de conflitos entre a polícia e manifestantes em São Paulo, dados de pessoas assassinadas no país ou aquela foto do índio chorando ao saber que a usina de Belo Monte será construída. Se continuar preferindo a alienação e o escândalo, a entidade corre o risco de não se diferenciar em nada da velha mídia, fazendo qualquer negócio para ganhar cliques.
Avaaz e suas "vitórias"
Na aba "destaques", podemos encontrar algumas das "vitórias" da Avaaz. Logo na página inicial, descobrimos que a entidade é "Protetora do planeta", por ter tomado parte na "pressão pública" que "reverteu a lei que daria boa parte da floresta Amazônica para a exploração de agronegócios (Junho, 2009)", tudo isso com ligações (?) e "mensagens online". A que se refere a Avaaz? À MP da grilagem, que foi sancionada pelo ex-presidente Lula e virou lei em junho daquele ano. A Avaaz afirma ser uma vitória dela (categoricamente, conforme e-mail enviado para os membros aquele ano) os dois vetos de uma lei que legaliza terras griladas na Amazônia, desconsiderando toda a influência dos movimentos sociais na questão, inclusive da WWF e do Greenpeace. A Avaaz vibra e faz propaganda de sua vitória sozinha, já que a transformação da MP 458 em lei, mesmo parcialmente vetada (ou quase integralmente sancionada, dependendo da posição do observador) desagradou as ONGs e os movimentos sociais envolvidos na questão.
Independetemente de ser ou não favorável à MP 458 ou de ter efetivamente conseguido pressionar o presidente da república (com ligações e spam!) a vetar parte dela, a Avaaz não pode afirmar que "reverteu a lei" sem explicar exatamente o que foi revertido. Quando faz essas afirmações sem mostrar o que aconteceu, a Avaaz desinforma seus membros (e possíveis doadores) e passa a impressão de ter impedido o sancionamento da lei, quando o contrário aconteceu. Por pura desonestidade ou incompetência, a entidade dá destaque a uma vitória que não pode se dizer dona, não pode dizer que "reverteu" e provavelmente não deveria estar aplaudindo.
Nesse quesito, aliás, a Avaaz é ímpar. Com o egocentrismo de um ditador, a entidade afirma reiteradamente ter "conseguido" vencer as causas que apoia através da pressão popular (?) de seus membros (???). Qualquer menção a organização por políticos ou pela velha mídia é tida como uma grande vitória da ONG, como aqui, em que todos os indícios de popularidade da Avaaz aparecem destacados em rosa.
O risco Avaaz
A Avaaz representa um risco para o ativismo digital. A entidade se comporta de maneira arrogante, até adolescente, pois parece se preocupar muito mais com a popularidade de seu ativismo do que com as causas que afirma defender. Suas petições, que provavelmente causam um impacto pequeno ou nulo, são vistas pela ONG como uma força democrática capaz de dobrar governos, acabar com guerras e pressionar a ONU. A entidade pede doações em todos os e-mails que envia (não vou ser desonesto aqui: Em todos os e-mails que recebi) enquanto vende essa imagem, possivelmente retirando valiosos euros de entidades que trabalham mais do que fazem marketing de suas campanhas. Quando a Avaaz apoia um lado vencedor, ela entra em um ritual bizarro de auto-congratulação e esquece de todas as ONGs, movimentos sociais e outras entidades da sociedade civil que ajudaram na causa.
O ciberativismo corre o risco de ser engolido pela onda de ignorância, spam e desonestidade intelectual promovida por entidades como a Avaaz. Precisamos ficar atentos.