domingo, 25 de novembro de 2012

A Hora do Louco




A Hora do Louco

O futebol pode não ser uma metáfora perfeita da vida, como querem os seus poetas, mas pode-se recorrer a ele para símiles e imagens que nos ajudam a interpretá-la. Quantas vezes você e eu não levamos bolas nas costas, ou pisamos na bola, ou não tivemos outra maneira de descrever o que sentíamos a não ser dizendo que o nosso meio campo embolou? A vida é uma bola, há os que a dominam no peito e põem, maciamente, na grama, e há os que a aparam com o nariz e chutam a grama. E até uma desilusão amorosa pode se parecer muito com um bom passe mal retribuído.

Uma boa e significativa história de futebol é a história do Louco. Havia um técnico de futebol que gostava de dizer aos seus jogadores que o futebol é um exercício da lógica.

- Lógica e perseverança - dizia, e os jogadores sacudiam a cabeça, impressionados.

Existia uma maneira lógica de se jogar futebol, e era só insistir nela que a vitória viria. Nada de inventar, nada de invocar os deuses e as suas mágicas. Os caminhos do gol estavam traçados no gramado há anos, desde os primeiros ingleses, e a única coisa a fazer era descobri-los. Com lógica e perseverança. "Futebol", dizia, "é civilização." E os jogadores sacudiam a cabeça, de acordo. Só não entendiam como o técnico, com todo o seu racionalismo, mantinha no plantel o Gonça. Também chamado de "Búfalo Bril", já que combinava um físico de búfalo com uma cabeleira de palha de aço. Ou, mais sinteticamente, de "Louco".
Para onde ia o técnico, ia o Louco. Que nem treinava. Que era mantido pelo técnico (mas claro que isso podia ser boato) num quarto escuro, ouvindo heavy metal e alimentando-se de parafusos.

No primeiro jogo difícil do seu novo time, o técnico conservava a calma. No intervalo, no vestiário, explicava no quadro-negro o que os jogadores estavam fazendo de errado, e como acertar. Logicamente. Sem drama. Friamente. Durante todo o segundo tempo, embora o gol tão procurado não saísse, o técnico nem levantava a voz. Manda recados ponderados para dentro do campo.

-Triangulação pelas pontas. Sem afobação.

Trinta minutos do segundo tempo e nada de gol.

-Vamos tramar pelo meio. Quem vem de trás continua pra receber na frente. Só chutar quando tiver certeza. Não perder a cabeça.

Trinta e oito do segundo tempo. Nada de gol.

-Os pontas fecham, o centroavante abre, os laterais entram em diagonal. Passes rápidos. Ainda há muito tempo.

Quarenta e dois do segundo tempo.

-Preparem o Louco.

Com o Louco, que entrava no lugar do centroavante, o técnico mandava para dentro do campo uma única recomendação. Bola na área e seja o que Deus quiser. E dali em diante, para quem recebesse a bola, ele gritava: "Manda na área! Manda na área!" esperando que ela sobrasse pro Louco. Pois o que o técnico deixava de dizer nas suas preleções é que futebol é civilização, mas só até os 87 minutos. Daí por diante é a hora do Louco. É a única lógica é da bola espirrada.

No Brasil, estamos ali pelos 38, 39 do segundo tempo e continua zero a zero. Aproxima-se a hora perigosa em que o Louco se tornará inevitável. Pior, se tornará bem-vindo. Não importa que nome ele tenha, Urutu ou algum outro bicho. O negócio é manter a cabeça e a calma. Insistir com a bola no chão. Pelo meio. Pelas pontas. Toques rápidos. Nós vamos conseguir.

Olha aí. Quarenta do segundo tempo.



Crônica extraída do livro Orgias de Luis Fernando Veríssimo.
L&PM - 2ª edição - 1989

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